segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O Filho Corporativo

Mesmo que as pessoas das próximas gerações sejam mais bonitas, mais inteligentes e mais bem preparadas, voltamos ao problema básico de que elas virão em menor número. O envelhecimento constante da população traz problemas graves. Por mais que uma melhor qualidade de vida proporcione às pessoas uma vida produtiva mais longa, a humanidade sempre precisará de renovação, como iremos reverter a tendência de queda na taxa de fecundidade (exacerbada ainda mais pelo conceito de filho coletivo discutido no post abaixo)?

A princípio acredito que o nível de equilíbrio da população mundial ficará consideravelmente abaixo do pico de 9,5 bilhões, a tecnologia vai conseguir manter o crescimento do PIB mundial por algum tempo mesmo em um cenário de população decrescente, e esta situação será bem vista a princípio, pois proporcionará um incremento acelerado no PIB per capita (uma vez que o numerador estará aumentando e o denominador diminuindo ao mesmo tempo). Este cenário, porém, se tornará insustentável à medida que a pirâmide populacional se inverta (com os idosos representando uma parcela cada vez maior da população) e que a queda populacional se torne uma ameaça à continuidade da espécie humana.

A partir do momento em que este problema se torna global (e deixa de ser um problema restrito a alguns países mais desenvolvidos), políticas de incentivo à imigração deixarão de fazer sentido, ou se tornarão muito caras uma vez que todos os países estarão fazendo o mesmo. O capital humano se tornará o recurso mais escasso. Também não acredito que os governos nacionais terão a força política que têm hoje, até porque o mundo precisará cada vez mais de soluções globais, incompatíveis com a estrutura geopolítica atual. A princípio a solução mais óbvia seria criar algum tipo de incentivo para as pessoas terem filhos, como isenções fiscais, benefícios, ou até mesmo pensões governamentais. Este modelo, porém, apresenta uma falha grave, pois por traz dele existe um incentivo perverso. Naturalmente as pessoas que estariam dispostas a ter um filho devido a uma pensão do governo seriam aquelas menos preparadas para tê-los. Em um mundo onde o capital humano será cada vez mais importante não é inteligente selecionarmos as próximas gerações através de um darwinismo às avessas, onde só os menos preparados sobrevivem.

A solução é ao mesmo tempo simples e controversa: Pessoas jurídicas adquiririam o direito de conceber e criar filhos.

Esta idéia pode parecer absurda para um leitor do início do século XXI, que ainda não sentiu na pele as conseqüências de uma população decrescente e de um envelhecimento acelerado da população. Além disso, tendemos a confundir a idéia do filho corporativo com algum tipo de escravidão, onde um ser humano “pertenceria” a alguma instituição, estando preso a ela para sempre num esquema de trabalho forçado. Longe disso, os filhos corporativos serão até mais “livres”, no sentido econômico da palavra, do que os filhos não corporativos, aqueles criados dentro de famílias dos modelos mais diversos.

Para aceitar o modelo do filho corporativo a sociedade exigirá uma legislação que proteja os direitos individuais do ser humano, não imagino que tenhamos um retrocesso neste sentido, por isso mesmo acredito que um sistema de semi-escravidão, que tolha a liberdade individual, não terá mais vez na sociedade do futuro, pois se tornará um conceito tão ultrapassado como o do colégio interno, discutido anteriormente neste blog. O desafio de montar um arcabouço jurídico que permita que corporações funcionem como geradoras e criadoras de seres humanos, lucrem com esta atividade, e ao mesmo tempo garantam a liberdade incondicional dos seus descendentes não será fácil, nem trivial. O governo, como principal interessado no crescimento populacional precisará intervir para que os incentivos corretos estejam presentes, não como executor (a lá Admirável Mundo Novo), mas como agente regulador.

O caminho óbvio é o subsídio, mas um subsídio inteligente, baseado na performance futura do filho corporativo. Ao remunerar um funcionário, assim como acontece hoje em dia, as empresas serão obrigadas a recolher um determinado valor em impostos, proporcional ao salário do empregado. Uma parcela significativa deste valor, no caso do funcionário ser um filho corporativo, seria repassado diretamente à empresa geradora. Desta forma a empresa geradora teria garantida a sua receita, e lidaria com um incentivo positivo, pois o quão mais bem sucedido fosse seu filho, maior o retorno futuro que esta empresa teria. Como o imposto seria recolhido igualmente para todos os funcionários (a alíquota para os filhos não corporativos seria igual, porém os recursos seriam repassados para uma espécie de previdência social), o funcionário não teria nenhum custo adicional por ser um filho corporativo, e nenhum tipo de dívida para com a empresa geradora. No caso de profissionais liberais os mesmos também seriam obrigados a recolher o referido imposto sobre o resultado de sua atividade, desta forma, independente da atividade exercida por seu filho no futuro, a empresa geradora teria a garantia de recebimento de um fluxo financeiro, o risco de inadimplência existiria, mas não seria menor que aquele referente à arrecadação de impostos por parte do governo. O sistema garantiria uma competição justa entre filhos corporativos e não corporativos, e um modelo sustentável de negócio para empresas geradoras.

O negócio de geração de filhos para funcionar de forma condizente com os padrões legais do futuro precisariam ser alvo de constantes inspeções e avaliações, para garantir que os filhos sejam criados de forma condizente com a legislação cível em vigor. Teríamos uma espécie de “vara de família” traduzida para o mundo dos negócios. As empresas teriam responsabilidade total sobre seus filhos até uma certa idade, e a partir daí o filho seria graduado de seu período de formação podendo buscar uma atividade profissional de sua preferência (algum tipo de remuneração final seria repassada ao filho, proporcional ao total investido durante o período de criação, de forma a garantir-lhe o sustento por alguns meses até que ele encontrasse uma posição no mercado).

Por ser um negócio de capital intensivo com retorno de longo prazo seriam necessárias algumas linhas de crédito com taxas baixas para financiar o primeiros anos de atividade destas empresas. Levando-se em conta que estaremos vivendo em tempos de pirâmide demográfica invertida e alta renda per capita, é de se esperar que o nível de poupança da sociedade seja alto, o que torna viável o crédito barato. Apesar do retorno de longo prazo o risco seria relativamente baixo, pois poucos duvidariam da necessidade de capital humano e da existência de um mercado ávido por empregar estes novos filhos corporativos. Algum tipo de regulação a princípio poderia ser necessária, principalmente para garantir a solvência das empresas geradoras, pois uma seqüência de falências nestas empresas poderia se transformar em uma tragédia social.

Uma empresa geradora de sucesso teria que ter uma alta capacidade de projetar as necessidades de capital humano para 20, 30 anos na frente, pois algumas características presentes na “safra” a ser produzida já poderiam ser estabelecidas desde o nascimento. O departamento de concepção (formado não só por especialistas em engenharia genética, mas também por estudiosos das ciências humanas e “futurólogos” em geral) teria o desafio de criar bebês com potencial adequado ao que se esperará deles no futuro. Uma vez concebida a criança, os diversos departamentos de preparação se encarregariam de preparar os filhos de forma a maximizar o retorno futuro de cada um. Os profissionais de uma empresa geradora desempenhariam os papéis de pais, babás, professores e orientadores. Seriam profissionais altamente qualificados, pois, na ausência de pais no conceito estrito da palavra, seriam os principais responsáveis pela performance futura dos pupilos e, conseqüentemente, pelos retornos futuros da empresa.

O modelo traz incontáveis oportunidades para aqueles que se aventurarem neste novo “business” dentro de empresas geradoras ou de empresas “satélite”, que prestariam serviços às geradoras formando um “cluster” muito parecido com o que é observado hoje com as montadoras de automóveis. Não está claro qual será o modelo de negócios “vencedor”, pois enquanto algumas geradoras preferirão se especializar (criando safras de filhos “padronizados” de forma a ganhar escala), outras optarão por diversificar (apostando que um convívio plural traz vantagens num mercado de trabalho cada vez mais focado em inovação), enquanto algumas procurarão se “verticalizar” (aproveitando as sinergias da cadeia), outras optarão por focar no “core” e terceirizar serviços adjacentes. Outra escolha importante é onde atuar, pois evidentemente existirá mercado para empresas em diversos nichos, desde formadoras de mão de obra mais básica (cujo investimento em educação e treinamento seria mais baixo, e os retornos, por sua vez, também), até “boutiques” geradoras, que trabalhariam com um número reduzido de “super high potentials”, apostando em altos retornos futuros. Ao contrário do que poderia prever Aldous Huxley, porém, não acredito que existirá muita demanda por seres humanos com qualificação muito baixa (os Ipsilones), uma vez que para as tarefas mais banais a automação provavelmente representará uma opção mais barata frente ao alto capital empregado para gerar e criar um filho.

Estabelecidas as leis e as medidas regulatórias necessárias, porém, é de se esperar que a empresa geradora acabe tendo com o filho uma relação mais forte do que aquela estabelecida por lei. Lembremos que este grupo de crianças conviverá de forma intensiva entre eles, criando um vínculo quase que “familiar” entre o grupo. É de se esperar que a “Turma de 2105” dos formandos da Geradora X se torne muito mais próxima do que uma turma de formandos de colégio ou faculdade, por terem vivido por cerca de vinte anos como verdadeiros irmãos.

O Filho Coletivo

Se temos cada vez menos tempo para os nossos filhos e se custa cada vez mais caro mantê-los e prepará-los para o mundo competitivo que os aguarda, nada mais natural que maximizemos estes dois recursos escassos (tempo e dinheiro) nos associando em grupos ampliados de pessoas em torno de um só filho. Nasce o conceito do filho coletivo. Se em 1950 um casal tinha seis filhos, passou a ter dois em 1980 e hoje tem apenas um, é natural esperarmos que o casal do futuro tenha 50% ou 20% de um filho, compartilhando-o com outros.

O conceito é simples, porém ainda precisará vencer algumas barreiras jurídicas e culturais para se tornar realidade: um grupo de amigos se junta com o intuito de criar uma criança. De preferência uma criança que não seja filho biológico de nenhum deles para não gerar qualquer tipo de vinculo diferenciado (um problema menor em um mundo onde pouquíssimas crianças serão geradas por inseminação natural). Além da óbvia vantagem financeira, um filho coletivo seria mais coerente com a vida atarefada dos novos tempos. Este novo formato proporcionará a cada pai ou mãe um determinado tempo com o rebento, tempo suficiente para preencher a carência afetiva e o senso paternal / maternal de cada um, mas insuficiente para que se aborreçam com o pesado dia a dia que acompanha a criação de um filho. Além disso, com vários pais e mães, a criança terá a oportunidade de absorver os mais diversos talentos e aptidões destas pessoas, tornando-se necessariamente alguém mais polivalente e talentoso que a média dos seus colegas. Um projeto colaborativo, uma tendência demográfica irrefutável. Ainda veremos, algum dia, um grupo de seis pais e um filho na capa da Veja, estipulando um novo padrão de comportamento social.

O núcleo familiar tende a ficar mais flexível. Hoje vemos cada vez mais pessoas morando sozinhas, ou em núcleos familiares reduzidos. A idéia de que um casal deve morar junto aos poucos vem sendo questionada, e casais começam a morar separado por opção. Os relacionamentos duram menos tempo e a idéia de juntos para sempre vai se tornando uma utopia. O percentual declarado de homossexuais (que na prática não podem ter filhos biológicos) vem aumentando, assim como o de bissexuais (que por definição não se satisfazem, no longo prazo, com um só parceiro). Junte-se a isso a idéia de que o filho não será mais de um casal, mas de um grupo, e temos um conceito expandido de família. No final disso tudo as pessoas morarão sós ou em grupos, mas estes grupos terão menos a ver com relações consangüíneas e hereditárias, e mais com relações afetivas e não exclusivas. O lar do futuro pode ser composto de três adultos, um idoso e uma criança, que podem não ter laços de sangue ou relacionamento conjugal, mas que se gostam, se ajudam e vivem em uma certa harmonia formando, portanto, uma família, por que não?

Outra ruptura no conceito tradicional de família deve vir junto com a evolução da engenharia genética. É difícil imaginar que na segunda metade deste século as mulheres ainda carreguem um feto em seu corpo por nove meses. A opção de uma gravidez completa “in vitro” sofrerá, a princípio, uma forte oposição cultural, principalmente de grupos religiosos, mas eventualmente passará de exceção à regra. Sejamos práticos, pra que passar nove meses carregando um bebê na barriga quando pode-se manter o corpo inalterado e ir visitar o feto no laboratório mais próximo sempre que quiser? No laboratório o feto terá perto de 100% de chances de sobrevivência, não estando exposto a acidentes ou doenças, “perder o bebê” será um conceito ultrapassado. Dependendo da evolução da engenharia genética talvez esperar nove meses não seja mais necessário. Num mundo onde as pessoas se preparam cada vez mais antes de ter um filho, este período obrigatório de preparação biológica deixa de fazer sentido.

Em algum momento surgirá a dúvida: prefiro um filho que se pareça comigo ou com o Brad Pitt? Com um mundo de possibilidades para alterar (e melhorar) geneticamente o DNA do rebento que vem por aí será cada vez mais tentador escolher um filho mais bonito e inteligente que o filho do vizinho, ao invés de um que herde seu pé chato ou seu cabelo ruim. Mais importante do que isso é a questão ética que começa a ficar confusa quando levamos em conta a saúde da criança: será que eu quero ter um filho da forma “natural” que herdará minha predisposição genética a diabetes ou a doenças do coração ou prefiro escolher um gene “melhorado”, com chances consideravelmente menores de desenvolver uma destas doenças? Abrir mão disso será considerado uma irresponsabilidade.

A partir do momento em que se elimina a gravidez, se expande o conceito do filho coletivo (inclusive com um arcabouço jurídico que sustente esta prática), e se torna possível escolher, através de um cardápio, as características desejadas para a criança, começamos a nos distanciar do conceito tradicional de reprodução. Filhos gerados da forma tradicional ainda existirão por algum tempo, mas sofrerão cada vez mais ao ter que competir com estes “super filhos”, predispostos geneticamente a se tornarem bem sucedidos. Os filhos naturais se transformarão, naturalmente, em cidadãos de segunda classe, e servirão eles próprios de desincentivo para a próxima geração de pais. Uma coisa não mudará com o tempo: sempre vamos querer o melhor para os nossos filhos, e se teremos apenas um, ou parte de um filho, e colocaremos nele todas as nossas “fichas”, não quereremos errar, e não correremos riscos.